sábado, 27 de novembro de 2010

O que é uma Primeira-Dama?

Lucy Ware Webb Hayes


Por Isabel Amaral


Segundo a enciclopédia hoje em dia mais consultada no mundo, a famosa Wikipédia, Primeira Dama é a mulher de um chefe de Estado eleito. A expressão terá sido criada, em 1849, por um presidente dos Estados Unidos - que fazia o elogio fúnebre da esposa de um seu antecessor - e, segundo parece, passou a ser de uso corrente, nos Estados Unidos, a partir da segunda metade do século XIX. Mas não se trata de um título oficial. Primeira Dama, com efeito, é uma designação vulgar, sobretudo utilizada pela comunicação social.

Há, nesta expressão, uma pompa algo pretensiosa, que parece arremedar um título nobiliárquico - conferido ainda por cima sem que seja necessário mais do que uma certidão de casamento. Por isso, o título de Primeira Dama - que uma «primeira dama» com Jacqueline Kennedy evidentemente detestava, afirmando que First Lady lhe parecia nome de cavalo… -, esse título pode ter surgido (mas é só uma hipótese de trabalho) como o equivalente republicano de rainha. Mas, enquanto uma rainha pode e deve ser considerada a primeira senhora do seu reino, é duvidoso que a mulher de um presidente da República deva reivindicar, e ainda menos proclamar, a mesma condição.

Foi aliás por isso, decerto, que nas repúblicas da Europa (onde não havia colonizador para substituir e macaquear) as mulheres dos respectivos presidentes levaram muito tempo a ocupar, na vida pública, um lugar de destaque semelhante áquele que ocupou, desde a eleição de George Washington, em 1790, a mulher do presidente dos Estados Unidos.

A Primeira Dama, com efeito, cedo fez parte da vida política norteamericana. Basta recordar que, já em 1877, Lucy Ware Webb Hayes (foto), a mulher do presidente Rutherford B. Haynes, não hesitou em definir a sua própria agenda e em ter um programa autónomo, sobretudo no plano da acção e da solidariedade social. Depois dela, muitas foram as mulheres dos presidentes dos Estados Unidos que adoptaram comportamento idêntico ao de Lucy Haynes, com destaque para Eleanor Roosevelt - que levou a extremos nunca vistos o papel de Primeira Dama.

O exemplo da América do Norte foi seguido pelos seus vizinhos do Centro e do Sul, que adoptaram a expressão Primeira Dama para designar a mulher do seu presidente - mas também a mulher do governador de Estado ou do prefeito de uma cidade. Isso também sucede, aliás, a norte, onde as mulheres dos governadores são consideradas as primeiras damas dos Estados que seus maridos governam. No caso da Califórnia, pelo menos, a designação de Primeira Dama encontra consagração em diplomas e documentos oficiais do Estado.

Algumas dessas primeiras damas vieram depois a assumir responsabilidades ainda maiores, chegando á chefia do Estado - como se fossem as legítimas herdeiras de seus maridos. Isto sucedeu, já por duas vezes, na Argentina - com Isabelita Peron, segunda mulher de Juan Peron (a quem sucedeu na presidência da República após a sua morte), e agora com Cristina Kirchner, que sucede, também ela, ao marido como presidente da República. Isto poderá suceder também com Hillary Clinton, se ela conseguir, primeiro, ser a candidata democrata ás eleições de Novembro e, depois, se conseguir derrotar o candidato republicano, John McCain.

Pelo contrário, no Velho Continente, a esposa do presidente da República começou por ser - e durante muitas décadas foi - uma figura discreta, que ajudava o marido a receber em sua casa, é certo, mas que não o acompanhava em cerimónias públicas e, muito menos, desempenhava papel de relevo na vida política do seu país.

É na segunda metade do século XX que o panorama começa a alterarse na Europa - e a mulher do chefe de Estado, quando não seja uma rainha, vai crescentemente participando na vida pública do seu país. Isto tem a ver obviamente com as significativas mudanças entretanto ocorridas nas sociedades europeias: a chamada emancipação da mulher, a sua entrada no mercado de trabalho, a sua crescente intervenção na vida política, a sua afirmação nos vários domínios da actividade social. Nos tempos que correm, ninguém perceberia que a mulher do presidente se limitasse a ser a mulher do presidente.

O próprio presidente precisa que ela não o seja. A Primeira Dama ocupa (é verdade que em nome do marido, em sua representação) espaços a que ele não chega, produz discursos e representa papéis que, melhor entendidos pelo facto de terem origem numa mulher, prolongam e consolidam o estatuto, o poder e a popularidade do marido.

Por outro lado, a política torna-se cada vez mais espectáculo, obrigando á criação de novas personagens e também de novos discursos e narrativas. As Primeiras Damas satisfazem essas novas necessidades, como Carla Bruni, a nova mulher do presidente Sarkozy, em França, não deixará de demonstrar á saciedade. Se tudo correr bem, é claro…

A crescente relevância da Primeira Dama na vida pública justifica, por isso, a definição de um estatuto e a criação de um aparato (nos vários sentidos da palavra) que consinta, á mulher de um presidente, desempenharse das tarefas que lhe estão confiadas. A todas elas, é reconhecida, como não podia deixar de ser, uma posição de destaque no Protocolo de Estado. E, hoje em dia, todas dispõem de serviços pagos pelo erário público para as apoiarem no desempenho das tarefas que lhes estão confiadas.

A importância protocolar da Primeira Dama, legalmente estabelecida, estendese em Portugal «aos cônjuges das altas entidades públicas, ou a quem com elas viva em união de facto, desde que convidados para a cerimónia». Nesse caso, estabelece a Lei portuguesa das Precedências, sob o título «Equiparações», élhes «atribuído lugar equiparado ás mesmas, quando estejam a acompanhálos».

A este propósito, vale a pena recordar que no projecto inicial desta lei, dispunhase que os cônjuges das altas entidades tinham lugar equiparado ao seu, nas cerimónias públicas, mas não as podiam substituir nem representar. Era uma curiosa reiteração dos bons princípios, que, na prática, são muitas vezes contrariados. Pelo menos no que toca á Primeira Dama.

Com efeito, a Primeira Dama, quando comparece sozinha a um acto público, só ocupa nele uma posição de particular destaque, a principal posição, aliás, porque é mulher do presidente e está, na prática, a substituilo ou a representálo - posto essa substituição ou representação esteja terminantemente proibida por lei…

Por outro lado, nos termos da lei portuguesa, «a fim de prestar apoio ao cônjuge do Presidente da República no exercício das actividades oficiais que normalmente desenvolve, funciona no âmbito da Casa Civil [do Presidente] um Gabinete de Apoio» constituído por dois adjuntos e um secretário.

O mesmo sucede noutros países democráticos e republicanos - a começar pelos Estados Unidos, onde, no site oficial da presidência, a mulher do presidente é designada por Primeira Dama, como se fosse esse o título que, nos termos de uma lei aliás inexistente, devesse ser dada á mulher do presidente norteamericano. Ou do brasileiro, já no que site oficial da presidência da República federativa do Brasil a mulher do chefe do Estado é igualmente tratada por Primeira Dama.

Questão curiosa é a de saber que título será conferido ao marido de uma senhora que ascenda á presidência dos Estados Unidos: primeiro Senhor, primeiro Homem, primeiro Marido?

O caso pode ter bizarras implicações. Admitamos, por um momento, que Hillary Clinton é eleita, em Novembro próximo, presidente dos Estados Unidos. Seu marido, Bill Clinton, ocupará no protocolo lugar de particular destaque, ao lado da presidente. Ocupando esse lugar, terá precedência sobre outros antigos presidentes americanos, como Jimmy Carter e George Bush - que, nos termos das regras protocolares vigentes em Washington, deveriam passar á sua frente por razões de antiguidade no cargo.

Esta situação já aliás se verifica num país sulamericano, a Argentina, com o marido da actual presidente da Nação, o Sr. Nestor Kirchner, ele mesmo um antigo chefe de Estado. De acordo com as regras protocolares, os antigos presidentes argentinos ocupam a sexta posição na lista de precedências, por ordem de antiguidade Isto significa que, á sua frente, o Sr. Kirchner tem uma boa meia dúzia de ilustres antecessores no cargo. Mas, pelo facto de ser o marido da actual presidente (ou devo dizer presidenta?), passará á frente de todos eles.

Sucederá assim, já sucede, que a conjugalidade prevalecerá sobre todas as outras regras, cujo fundamento se deve encontrar nos princípios constitucionais de uma República democrática. O contrato nupcial terá precedência sobre o contrato político, celebrado em cada eleição entre governantes e governados, entre representantes e representados. Para os puristas, a situação pode parecer bizarra, senão absurda. Mas temos de reconhecer que é uma boa notícia para os adeptos do casamento e da família.

E, depois, há exemplos que podem iluminar o futuro primeiro Senhor, ou primeiro Homem, ou primeiro Marido, dos Estados Unidos. Ele poderá por exemplo inspirarse nos vários príncipes consortes da velha Europa - a começar pelo príncipe Filipe, duque de Edimburgo e marido da rainha Isabel II de Inglaterra. Menos recomendável é que siga o exemplo do príncipe Henrique, marido da rainha da Dinamarca.

De acordo com o protocolo dinamarquês, o príncipe consorte - o marido da Rainha - tem precedência sobre o príncipe herdeiro - o filho e sucessor da Rainha - até este ser maior de idade. Mas, quando o herdeiro da Coroa atinge a maioridade, é este quem substitui a rainha nas suas faltas e impedimentos. Ora, sucedeu que numa recepção de fim do ano, no Palácio real de Amalienborg, em Copenhaga, a rainha Margarida, estando doente, fezse substituir, como era de lei, pelo seu filho. O seu marido deu por paus e por pedras e, declarandose «humilhado», chegou a sair de casa. Numa entrevista a um jornal sensacionalista, explicouse: «Depois de tantos anos a exercer o papel de número 2 na Dinamarca, não me agrada tornarme subitamente o número 3!» E, comparando o seu estatuto ao estatuto da PrimeiraDama (o que, como vimos, não é inteiramente despropositado), declarou: «Na Dinamarca, o "Primeiro Homem" sou eu, não o meu filho» …

Há outros exemplos que podem iluminar Kirchner ou Clinton - como é o caso de Denis Thatcher, discreto e amável marido de Margaret, a famosa chefe do governo de Sua Majestade Britânica. Foi ele quem luminosamente definiu o papel do cônjuge de uma alta entidade pública, afirmando que este deve estar «always present, never there».

Não é porém provável que o Sr. Kirchner, ou o sr. Clinton, ou outro «primeiro senhor» qualquer, se disponham a seguir este sábio conselho.

Isabel Amaral

Madrid, 28 de Fevereiro de 2007

(Palestra proferida por Isabel Amaral, na EIP -Escuela Internacional de Protocolo- em Madrid, Espanha, no dia 28 de Fevereiro de 2008).

Sobre a autora:

Isabel Amaral
apep_protocolo[arroba]yahoo.com
www.isabelamaral.com

Nenhum comentário: